Algumas pessoas, com isso quero dizer alguns artistas e, mais especificamente, músicos, conseguem ter total consciência de como o tempo age em suas mentes e em seus limites. Não era possível saber exatamente como o tempo agia em Neil Halsted, Rachel Goswell e o resto do Slowdive até presenciar recentemente a um show do grupo e ouvir repetidas vezes ao seu novo disco, Slowdive, lançado 22 anos após Pygmalion.
A conclusão breve é que o Slowdive envelheceu como aquele tio zeloso e até orgulhoso com os próprios feitos de um passado não tão distante, mas totalmente consciente que já não é mais o jovem cheio de ideias e vontades de experimentar de outrora. Uma visão um tanto romântica e uma frase um tanto óbvia, mas é esse ato de autoexaminação constante de tudo que fizeram e de tudo que são capazes que faz de Slowdive um disco tão surpreendentemente bom.
Os instrumentos e elementos são basicamente os mesmos de décadas atrás, mas Neil toca sua guitarra como alguém examina caixas e mais caixas empoeiradas de fotos antigas na casa de seus pais. Com serenidade, muita consciência e certo saudosismo que não geram ansiedade pelo tempo passado, mas lhe deixam cada vez mais convicto que suas possibilidades atuais são algumas específicas. Vinte e dois anos, imagino, podem te deixar bem econômico e seguro naquilo que você tem a dizer e, se por um lado, não existe mais aquele ímpeto de se fazer misterioso e deixar frases nebulosas no ar com sussurros e experimentar musicalmente, por outro, o Slowdive se apoia na simplicidade e tem a certeza que uma melodia completa e bonita no meio dos elementos perfeitos de sempre (voz de Rachel, linhas de baixo precisas e um clima sempre intenso e único) bastará. Como bastam em “Slomo”, “Star Roving”, “Sugar for the Pill” e “No Longer Making Time”.
As caixas cheias de fotografias vão acabando e os dedos já estão pretos de poeira, mas quando você sem querer lambe um desses dedos para virar a página do último álbum e sente aquele gosto amargo da poeira acumulada de anos não é necessariamente ruim a sensação que fica, apenas um ótimo lembrete de quem você é.
O tempo é crucial na obra de Richard Linklater, muitas vezes o melhor amigo do(s) protagonista(s) de seus flmes. Não digo isso só pelos doze anos de produção com os mesmos atores de Boyhood (2014), mas também pelo acompanhamento próximo de um dia (três vezes) da dupla Céline e Jesse e a diferença exata de nove anos entre os três filmes da trilogia – Before Sunrise (1995), Before Sunset (2004) e Before Midnight (2013), pelos acontecimentos aleatórios entrelaçados numa grande sequência em Slacker (1991), pela sequência teatral de Tape (2001) com três personagens resolvendo o filme numa noite em um quarto de motel, pela sequência de sonhos de Waking Life (2001), pela derradeira e única noite de SubUrbia (1996), pelo ultimo dia de colégio de Dazed and Confused (1993) e o fim de semana pré faculdade de Everybody Wants Some!! (2016). Enfim, para Linklater conhecer uma fração da vida de seus personagens revela o suficiente para o público conhecê-los, entendê-los e se apaixonar por cada um deles. Essa frase poderia servir para qualquer filme do mundo, mas as frações de Linklater parecem ser mais restritas e os acontecimentos muito banais e cotidianos o que dá um grande charme para seu estilo e seus filmes.
O acompanhamento próximo acontece nos inúmeros diálogos que, consequentemente, possibilitam muitas partes silenciosas e é justamente nesses momentos que a música entra em seus filmes, para quebrar o ritmo ou complementar seus personagens. Mas, apesar do tempo e do silêncio, é a diversidade de seus filmes, mostrada nesse apanhado de momentos musicais e analisando sua carreira, que acaba chamando mais a atenção. Escute a mixtape com as músicas escolhidas nesse post, compare School of Rock (2003) ou Me and Orson Welles (2008) com Slacker ou Before Sunrise, entre de cabeça no Texas de Bernie (2011), The Newton Boys (1998) ou Boyhood (2014), ou então na juventude suburbana de SubUrbia e compare com a de Dazed and Confused e entenda que Linklater é um texano comum, mas que gosta de retratar os pequenos acontecimentos e sutilezas da vida que nos diferenciam.
Contém spoilers, cenas finais, etc.
A preocupação de Richard Linklater com o tempo e o acaso em seus filmes já fica claro em Slacker, sua estreia, com a sequência de encontros aleatórios que revelam fragmentos da vida de dezenas de personagens. Sobre essa aleatoriedade de acontecimentos na qual muitas vezes nosso dia a dia se transforma, sempre imaginei que cada um de nós possui um fio invisível que sai de nossas cabeças e sobe até o infinito e a vida é esse grande emaranhado de fios que a gente consegue criar e acumular ao cruzar com todas as pessoas que passam pelas nossas vidas, algumas poucas, outras milhares de vezes. Slacker me traz de volta esse pensamento e a cena final arranca de mim um grande sorriso pela linda versão de “Skokiaan” que o alemão Horst Wende e sua orquestra fizeram para o clássico africano. Toda a aleatoriedade do filme e da cena final, toda a liberdade que Linklater tem para essa estreia independente funciona muito bem com essa música para cima e extremamente marcante.
Apesar das milhares de músicas que rolam em Dazed and Confused, não existem muitos momentos musicais extremamente marcantes nesse clássico de Linklater. Mas a questão dessa trilha é sonorizar o último dia de aula em um colégio americano em 1976, portanto somos bombardeados por todos os lados: ZZ Top, Alice Cooper, Foghat, Aerosmith, Kiss, War, Nazareth e muitos outros. A cena que fica para mim, porém, é quando “Tuesday’s Gone”, do Lynyrd Skynyrd, toca. Aquela melancolia de fim de festa começa a pairar como uma neblina na cara dos personagens e o azul começa a aparecer no até então preto céu. É hora de arrumar as coisas e pegar seus belos carros para voltar para casa. Como de costume, Linklater passa longe dos julgamentos de seus diversos personagens. Apenas o técnico, o único adulto relevante do filme, ganha a caracterização de um vilão, de resto, não importa. Cada um vai tomando o seu rumo de casa enquanto “Tuesday’s Gone” vai se misturando com a manhã.
A única cena musical de Before Sunrise é justamente quando Céline, Julie Delpy, e Jesse, Ethan Hawke, entram em uma loja de discos em Viena e ela pergunta se ele conhecia Kath Bloom. Após a resposta negativa de Jesse, os dois simplesmente ficam dentro da cabine escutando a “Come Here” em silêncio. É com Kath Bloom e o silêncio que Linklater garante a primeira conexão do casal. Na verdade, Céline sempre se comunicou melhor nas entrelinhas, enquanto Jesse se exaspera, como um bom representante do tipo homem, e essa cena mostra bem isso.
SubUrbia é, em resumo, uma espécie de Clerks se o mesmo fosse dirigido por Linklater. Saem os palhaços Jay e Silent Bob e entram o bobalhão, o anárquico, a artista, o cínico e a depressiva. Sim, uma turma de adolescentes bem cliché e, por isso, real que apenas se encontram, bebem cerveja e ouvem música na frente da loja de conveniência. Mas uma turma também capaz de encenar diálogos muito precisos revelando aos poucos como funciona a pacata Burnfield, a SubUrbia em questão. Apesar da entrada maravilhosa do filme com Gene Pitney, é o Sonic Youth, mais especificamente Kim Gordon, que se destaca numa trilha com Boss Hog, Girls Against Boys, Pennywise e tantos outros nomes da época, e dá personalidade a Bee Bee numa cena bonita e familiar a todos, onde a garota tímida dançando sozinha ao som de Sonic Youth é abordada pelo bobalhão que só quer levá-la para a van e a conversa vai revelando potencial para algo mais significativo e profundo, mas que nunca se concretiza de verdade.
Waking Life é um mundo todo à parte com diálogos filosóficos muito reais, mas ao mesmo tempo com um clima muito distante da realidade, e que extrapola tudo que Richard Linklater havia feito em Slacker. Saem os atores amadores e toda conversa banal para dar espaço a atores reais, com uma camada de animação, com conversas profundas e rápidas que passam por todos os cantos de nossa consciência cutucando diversas verdades que existiam escondidas por lá. Um filme incrível e ambicioso que ganha ares mais complexos ainda com a trilha do Tosca Tango Orchestra. A cena final do protagonista que finalmente parece acordar, mas começa a flutuar ao som da orquestração levemente dramática cola na retina enquanto tentamos processar todo o filme.
Eu gosto de School of Rock. É preciso tirar isso da frente para podermos seguir no post. E, apesar de tanta cena musical engraçada em uma história ingênua, mas tão bem contada, essa especificamente entre Jack Black e Joan Cusack ao som de Stevie Nicks destoa de todo o resto justamente porque sabemos o que esperar de Jack Black, mas não de Joan, diretora da escola que sai para tomar uma cerveja inocente e acaba sendo levada a aprovar uma excursão escolar pelo poder de persuasão de “Edge of Seventeen” e seu refrão grudento e bem anos 80. Esse é o exato momento quando o personagem de Joan é revelado e daqui em diante tanto o Jack, quanto as crianças da escola e todos nós sabemos que podemos confiar nessa diretora.
Ao contrário de Before Sunrise, que ainda vinha com algumas canções, não cabe muita trilha ou cenas musicadas em Sunset. A dupla Jesse e Céline faz o filme fluir só com suas conversas reprimidas de dez anos com doses na medida de humor, raiva, rancor e carinho. Sem dúvidas o meu preferido da trilogia por traduzir o pouco tempo que parece existir entre eles em tão pouco tempo de filme (uma hora e vinte) com atropelos na conversa entre ambos que são ótimos de se assistir. O ápice desse encontro com certeza é a valsa que Céline toca ao violão para Jesse deixando para a sequência final, resumida numa valsa, tudo aquilo que ele tenta explicar o filme todo e ela basicamente escuta. Mas é na personificação de Nina Simone, na sequência da valsa, que você vê a realização do filme, o relaxamento dos dois personagens e da falação toda. Antes mesmo das últimas palavras de Jesse.
Apesar de Jack Black entregar muito em School of Rock, tudo que ele entrega já era esperado, até demais. Em Bernie, porém, mais precisamente nessa cena de apresentação do protagonista, somos surpreendidos porque “Love Lifted Me”, do Florida Boys, é perfeita para Jack Black, mas totalmente inesperada. Bernie andando de carro pela sua cidade, enquanto canta e interpreta cada verso de “Love Lifted Med” traduz muito bem do que se trata essa pessoa (real), as explicações ao longo da cena são quase irrelevantes.
Boyhood é um filme estranho porque ele é propositalmente datado. Seja com a introdução com Coldplay ao fundo, hit na época em que o filme começou a ser filmado, com Samantha assistindo ao então controverso clipe da Beyoncé com a Lady Gaga, lançado em 2009, com as conversas via Skype entre pai e filho e diversos outros momentos que são quase vergonhosos de tão recentes para serem lembrados em filme dessa maneira. Musicalmente falando, o filme também é datado , mas o momento mais marcante, não só pela canção escolhida, que gosto muito, é quando o pai de Sam canta e explica “Hate It Here”, do Wilco, pro seu filho (assista à cena aqui). Assim como “Love Lifted Me” explicava bastante sobre Bernie, “Hate It Here” resume a vida do personagem de Ethan Hawke na primeira parte do filme de forma bem precisa.
De cara, Everybody Wants Some!! parece mais uma sequência de American Pie do que Dazed and Confused, mas aos poucos os personagens do time de baseball da faculdade vão mostrando suas individualidades e acompanhar o fim de semana do bando fica um tanto mais divertido. Enquanto Dazed era recheado de clássicos dos anos 70, Everybody homenageia a década de 80 em alto estilo com Devo, Cars, The Knack, etc, mas a cena com os seis branquelos cantando “Rapper’s Delight” em uníssono no carro é deliciosa, comprovando bem o sucesso do estilo e mais precisamente desse hit do trio Sugarhill Gang retratada na série Hip-Hop Evolution.
Existe um sentimento comum, assim eu percebo, que une os fãs do Grandaddy e, tendo escutado os discos da banda por mais de quinze anos, hoje eu vejo que o sentimento que nos une é bem parecido, se não o mesmo, ao que une os fãs de Bartleby, o escrivão, novela de Herman Melville. Last Place, novo disco do grupo após uma pausa de 11 anos, veio para corroborar essa teoria.
Musicalmente, o espírito de Bartleby vem com a mesma roupagem que o Grandaddy já usava antes, com o marasmo californiano que a voz de Jason Lytle carrega, com a simplicidade das canções, mas uma alternância rica de tempos (passados, presentes e futuros) e uma melancolia intrínseca que pode ser associada ao escrivão, mas não só, claro. A novidade fica por conta da linda produção de Danger Mouse que conseguiu expandir o som do Grandaddy como havia feito com Dreamt For Light Years In The Belly of a Mountain, do Sparklehorse, em 2006.
Mas não é musicalmente e, sim, liricamente que eu vejo essas obras se aproximando. É a negação feita de forma natural no verso “That is the way we won’t / We won’t” que poderíamos recriar como “That is the way we prefer not to”. Ou então no arrependimento honesto, mas semi contente de “I just moved here and I don’t want to live here anymore”. Em “That’s What You Get For Gettin’ Outta Bed”, uma balada triste que remete ao clássico The Sophtware Slump (2000), Jason retrata magistralmente, isso aqui significa sem esforço, nossa batalha cotidiana contra a resignação onde o resultado é mais uma agridoce canção no fim do dia: “That’s what you get for gettin’ outta bed / Warming up your heart and clearing up your head”. “Where there is peace / You will not find me”, canta Jason na sequência, em mais um pedaço de pura verdade, mas acompanhada de uma grandiosidade musical que dá um ar devastador de Mercury Rev a “This Is The Part”. E, apesar de tantos versos que me deixam encarando a tela do computador totalmente inerte, é “Songbird Son”, a derradeira, que me paralisa de vez: “The songbird son died quiet / Songbird son you lost your right to sing / Message better left unsaid / Don’t say nothing”.
Jason Lytle havia dito, quando anunciou a reunião de sua banda, que ele tinha mais um disco a lançar como Grandaddy. Essa frase faz total sentido se percebermos a alegria dos teclados de “Way We Won’t”, o riff bem Sumday (2003) de “Brush With the Wild”, o interlúdio tão Grandaddy de “Oh She Deleter :(“, o alt-rock simples de “Check Injin”, a saudosista “Jed the 4th” e toda a segunda metade voltada para reforçar esse sentimento que une os fãs do Grandaddy. Sentimento indescritível por trazer novamente aquele ar misterioso em forma de silêncio e um sorriso de canto de boca de todos nós.
Message better left unsaid, don’t say nothing.
O foco que Calvin Johnson dava aos singles fez com que a K Records se transformasse num celeiro de hits e artistas independentes extremamente livres e promissores. Isso ficou muito claro durante a seleção dos 10 discos que fariam parte do especial K Records aqui no Suppaduppa.
Isso tornou a seleção de músicas para essa mixtape tarefa ainda mais difícil do que a seleção dos 10 discos. A guitarra, obviamente, é o centro das atenções e com ela o twee/indie pop tão difundido pela gravadora, mas lado a lado com grupos ensolarados, como Talulah Gosh, Saturday Looks Good To Me, Tiger Trap e The Halo Benders, estão bandas pesadas como Old Time Relijum, KARP e Lync e algumas coisas mais estranhas, como Mecca Normal, Dub Narcotic Sound System e D+, sem esquecer ali no meio de tudo isso o hip-hop bem anos 90 do Dead Presidentes. No fim, só temos a certeza que o coração aberto para música boa que a K tinha funcionou maravilhosamente bem.
A história da K Records, de Calvin Johnson, está totalmente interligada com os principais movimentos underground norte-americano entre a década de 80 e os anos 2000. Ativamente ou nem tanto, a K passou pela história da Dischord (Calvin morou em Washington em sua adolescência quando conheceu Ian MacKaye e viu o movimento hardcore crescer e também lançou alguns singles em uma parceria entre as duas gravadoras chamada DisKord), Sub Pop (Calvin teve um programa de rádio na KAOS com Bruce Pavitt, fundador da Sub Pop) ou Kill Rock Stars (Calvin ajudou Slim Moon a lançar a compilação que dá nome a sua gravadora). Foi essencial para o surgimento e/ou consolidação do riot grrrl (Jean Smith e o seu Mecca Normal foi lançado pela K e Calvin sempre foi muito próximo de Stella Marrs, Tobi Vail e outras artistas de Olympia), grunge (apesar de não ter prestado atenção no Nirvana, promoveu diversos shows com bandas da cena de Seattle) e twee (foi responsável por 3 lançamentos do Heavenly, Tiger Trap, Marine Girls, etc). A K Records foi um verdadeiro pilar criativo e revolucionário para o movimento independente para pessoas de todos os cantos da América e do mundo e essa história é bem relatada no livro Love Rock Revolution, de Mark Baumgarten.
Infelizmente, o que não fica bem explicado é o lado não criativo da história, as complicações financeiras de ter uma empresa pequena num mercado que sofreu muito, principalmente nos últimos vinte anos, com a internet e a troca gratuita de arquivos. Por ter lançado ou impulsionado artistas que estourariam depois, como Modest Mouse, Beck, The Gossip, Kimya Dawson, Microphones, entre tantos outros, não foram raras as vezes que a K viu o dinheiro passando pelo seu caixa e o que muitos dizem é que houve, sim, muita negligência e não só desconhecimento de negócio para chegar a dívidas na casa dos US$ 200 mil, como é o caso com Kimya, que veio a público a respeito.
Uma mancha realmente triste na história da gravadora, mas que nunca será totalmente explicada pelo respeito ou receio que muitos desses artistas continuam tendo pelo o que representa Calvin Johnson. Por isso também o foco desse post é na música que ele nos proporcionou. Escolher 10 discos emblemáticos lançados pela K Records e deixar tantos de lado machuca, mas o intuito é apenas celebrar o amor que esse cara conseguiu espalhar por esses álbuns errantes.
Após o apanhado que foi possível fazer para o auto-intitulado disco de estreia, de 1985, o Beat Happening se reuniu com Steve Fisk, amigo que acabara de produzir os dois primeiros lançamentos do Screaming Trees, e gravaram Jamboree. Um salto enorme na qualidade do som, que continuava obviamente lo-fi, mas com uma clareza transformadora. Simplicidade que anima (“Ask Me” e “Cat Walk”) e melodias renovadoras (“Indian Summer”), mas o grave de Calvin Johnson está mais grave (“Hangman”), o clima é obscuro (“In Between”) e o breve disco acaba antes de entendermos o que acabou de acontecer.
A conexão das diversas cenas punk ou underground, chame do que quiser, era tão grande mesmo mundialmente, que rapidamente Calvin fez contatos com gravadoras e entusiastas de fora dos EUA, como a Rough Trade, que tinha um braço em San Francisco, conheceu diversas pessoas na Europa e Reino Unido e foi apresentado à gravadora 53rd & 3rd, fundada por um tal de Stephen “Pastel” McRobbie. Foi assim o primeiro contato com Amelia Fletcher, então vocalista do Talulah Gosh, grupo lançado pela 53rd em meados dos anos 80.
Quando Calvin, em uma de suas viagens ao Reino Unido, conheceu Amelia, seu irmão Matthew e Peter Momtchiloff, o Talulah Gosh já era história e o Heavenly já tinha lançado seu primeiro disco, Heavenly Vs. Satan. Mas se houve tempo para lançar Le Jardin de Heavenly, em 1992, tudo mais do que certo, pois esse álbum pode resumir espiritualmente tudo o que a K Records era no começo dos anos 90. Puro amor em forma de twee refinado.
A estética e a ideia do Little Wings, de Kyle Field, se encaixam perfeitamente no ideal da K Records, pois desde o fim dos anos 90 e começo dos 00, o grupo já aparecia como uma espécie de Beach Boys em notas menores, com a solidão de Kyle no lugar de múltiplas vozes em harmonia perfeita, gravação extremamente simples e a dedicação total pela canção e apenas ela. Light Green Leaves ainda me surpreende quando o escuto atualmente pelo modo que Kyle se aproxima das coisas, sentimentos e banalidades com total sinceridade e poesia. Uma espécie de Leonard Cohen californiano, sem camisa e cabelo descolorido. Cigarrinho na ponta dos dedos, violão jogado no chão e um caderno com palavras jogadas, desenhos e poesias. O lápis às vezes na orelha, outras perdido no quintal.
Há de se concordar que a compilação The Normal Years, de 1996, está longe de ser um dos discos mais memoráveis do Built to Spill, mas isso só acontece porque a discografia do grupo é irretocável, principalmente os seus lançamentos da década de 90. Mas a importância de Doug Martsch para o universo da K Records faz com que o único álbum do Built to Spill lançado pela gravadora ganhe um destaque merecido. “Car”, “Girl”, o cover de “Some Things Last a Long Time”, de Daniel Johnston e Jad Fair, e “Still Flat” facilmente aparecem como algumas das músicas mais bonitas que a gravadora lançou nos anos 90.
Além disso, o fato de Doug Martsch ser tecnicamente um guitarrista sensacional não o impediu de formar um grupo com o simples Calvin, o Halo Benders, e lançar três ótimos discos em paralelo com os clássicos do Built to Spill. Um membro essencial para a consolidação da gravadora na segunda metade dos anos 90.
O primeiro lançamento da K Records está longe de ser uma obra prima e, sinceramente, sei que deixei vários discos de fora da lista (KARP, Yume Bitsu, Tiger Trap, Halo Benders, etc) para colocar o Supreme Cool Beings apenas pela história. Gravado em uma sessão na KAOS, rádio universitária onde Calvin Johnson trabalhou por anos desde seus tempos de colégio, e se aproveitando do crescimento do formato fita k7 no underground, entre amigos, ele simplesmente foi atrás de um cara que vendia fitas para gravações de missas e comprou algumas dezenas, pediu para uma amiga fazer cópias da original que pegou da rádio, pediu para outra fazer uma capa e escreveu em cada fita Supreme Cool Beings — Survival of the Coolest. Ao lado, um singelo K dentro de um escudo.
Apesar da inconstância e amadorismo de Survival of the Coolest é totalmente compreensível a vontade de Calvin de espalhar essas músicas por aí. O som é totalmente pós-punk, bem característico do começo dos anos 80, mas essas músicas emanam um humor singelo e uma despretensão que caracterizam a aproximação da banda e da gravadora em relação a quase tudo.
Vejo muito da Liz Phair na arte solitária da Mirah. Não em termos de atitude, mas nas melodias e construções de climas, ambientes e histórias. Cada música sua tem uma vida e força próprias e essa independência é notável no seu disco de estreia, You Think It’s Like This But Really It’s Like This. Existe aquela sensação de que tudo pode acontecer de uma faixa para outra, tanto lírica (Mirah) quanto musicalmente (Phil Elverum), e essa expectativa cresce e cresce e incrivelmente ela não decepciona nunca.
O disco é para cima (“Be Still My Heart” e “Pollen”), complexo nas melodias (“La Familia” e “Words Cannot Describe”), completo em sua simplicidade (“Person Person” e “Be Still My Heart”), triste (“100 Knives”) e apoteótico (“Sweepstakes Prize” e “Of Pressure”). Um dos lançamentos mais surpreendentes da gravadora até hoje, que emana uma feminilidade hipnotizante.
Em 1994, o emo não era necessariamente uma novidade, com o Sunny Day Real Estate já em cena, o Jawbreaker consolidado e outras inúmeras bandas surgindo nesse período, mas o Lync pode ser facilmente considerado um dos pilares fundamentais e uma das mais influentes bandas para todos os emos e bandas que vieram depois. Tenha certeza disso.
O primeiro e único disco do grupo liderado por Sam Jayne, que posteriormente formou o Love as Laughter, chamado These Are Not Fall Colors, tem diversas cores e tons utilizados pelo Trail of Dead, clima à la Cap‘n Jazz e baixo predominante como ouvimos em todas as bandas da época, mas vem, principalmente, com aquela pureza de pessoas explorando o máximo de seu potencial sem tantas amarras ou referências óbvias que cada uma das dez faixas do álbum se torna um verdadeiro deleite para quem tem uma quedinha por guitarras distorcidas. Um dos discos mais puros que a K já lançou ou lançará.
Sete músicas em dezessete minutos de um electro pop gostoso e dançante o suficiente e que mostra a evolução em relação aos primeiros discos da dupla composta por Khalea Maricich e Jona Bechtolt, o YACHT. Claro que Paper Television contém alguns dos hits mais pegajosos do ano de 2005, mas Poor Aim: Love Songs, EP lançado um ano antes, parece ter menos medo de ser mais pesado quando precisa e mais funk apenas porque sim e quando a dupla resolve ser pop, eles são matadores. “Hey Boy” e “Come On Petunia” são, sim, mais viciantes que “Pile of Gold” ou “True Affection”.
Muito engraçado ver que em uma visita de Calvin Johnson a Washington, Ian MacKaye o leva a um show que a Dischord estava promovendo para apresentar o Ulysses, banda liderada por um tipo chamado Ian Svenonious. A intenção do fundador da Dischord era entender se Calvin não tinha interesse em lançar essa banda desse estranho cara, já que o hardcore misturado com R&B e com membros bem vestidos em cima do palco talvez fosse estranho até para a Dischord, que nunca havia descriminado ninguém. A conversa se transformou num novo selo, a Diskord, justamente a junção das duas gravadoras que lançou o primeiro 7’’ do grupo.
Já como Nation of Ulysses, foram dois lançamentos pela própria Dischord, mas como Make-up, mais 3 pela Dischord e 2 pela K Records. Save Yourself, de 1999, sendo o mais consistente e coeso em termos de disco com todos os conceitos da banda intactos, com o seu R&B realmente bonito e contagiante, a banda totalmente entrosada, muito vazio para Ian cantar, gritar e croonar, como só o verdadeiro sassiest boy in america faria. Uma pedrada de pelúcia difícil de esquecer.
Às vezes eu acho que It Was Hot, So We Stayed in the Water (2000) é um disco mais potente ou que Don’t Wake Me Up (1999) é mais sensível, mas eu sempre volto para o clássico do Microphones, o The Glow Pt. 2, de 2001, para uma verdadeira dose de vida.
A história de Phil não deixa de ser tão interessante como todas as outras já apontadas acima, pois, tendo crescido em Anacortes, ele teve a sorte de conhecer um lugar, chamado The Business, que era uma mistura de sebo / loja de discos / local de revelação de filmes / sei lá o que onde passava as tardes com os seus amigos. Não só a sorte de ter um lugar desses para ir, descobrir o Sonic Youth ou coisa que o valha, mas de conviver com Bret Lunsford, guitarrista do Beat Happening que havia virado sócio do local um tempo antes, e tê-lo como grande incentivador para absolutamente tudo que ele imaginava fazer. Zines (The Paintbrush, The Blimp), ouvir música, revelar filmes, apenas existir e, após um amigo conseguir equipamentos de som, montar um estúdio onde ele brincava com os botões e barulhos.
Num ambiente desses e depois com livre acesso ao estúdio de Calvin Johnson, o Dub Narcotic Studio, fica fácil entender como Phil se transformou numa espécie de mestre do lo-fi barulhento de estúdio. The Glow Pt. 2 apenas escancara todas as qualidades que transformam Phil num guru misterioso, silencioso e sábio. Cada música e interlúdio do disco abre uma porta escondida no canto de sua mente que te conduz para outro quarto escuro e assim você vai rastejando pela poeira dos seus pensamentos nesse labirinto que se chama mente para chegar a lugar nenhum.
Uma prova final da importância da K Records, que sempre deu abertura à diversidade de seus artistas e liberdade para cada um fazer o que bem entender, inclusive em seu estúdio. Como indica o livro, entender o punk como uma ideia e não como uma atitude. O punk como amor e Calvin sempre foi amor, apesar de todos os pesares de um negócio independente e pequeno. E desse corpo estranho e bonito chamado K, The Glow Pt. 2 sempre será a alma.