“Parece que virei uma jukebox de Iron & Wine”, disse algo parecido Sam Beam logo após tocar algumas canções no show que fez em São Paulo, na noite de quarta-feira, 2 de setembro, no Cine Joia. O motivo era bem simples, Sam, com dois violões e nada mais, anunciou logo que subiu ao palco que o pessoal podia pedir canções já que o clima seria totalmente intimista. E pedidos foi o que recebeu do início ao fim. E pedidos ele atendeu do início ao fim. Pedidos insistentes de canções de mais de dez anos atrás o surpreenderam. Pedidos que ele respondia com “Thank yous”. Não diria que agradeceu um a um, pois eram muitos os pedidos, dezenas a cada parada. Mas foram vários “obrigados” proferidos por Sam porque o sentimento que transbordava lá de cima do palco era realmente de agradecimento pelo público entusiasmado, pelo público que soube cantarolar mais a “Tree by the River” do que “Naked as We Came”. Sam Beam era um professor surpreendido e por isso o show não foi só de baixo para cima, mas de cima para baixo também e por isso ele tocou mais de vinte canções, errou acordes e esqueceu a letra em pelo menos duas ou três ocasiões, pois atendeu a pedidos reprimidos por mais de uma década, provavelmente. Tocou “Jezebel” e “Woman King”, do EP Woman King, tocou muitas canções dos álbuns mais recentes e menos aclamados, Kiss Each Other Clean e Ghost on Ghost, tocou a sua versão de “Such Great Heights”, do Postal Service, e de “Waitin’ for a Superman”, do Flaming Lips. Mas também tocou muitas de The Creek Drank the Cradle (2002), Our Endless Numbered Days (2004) e The Shepherd’s Dog (2007) porque a espera por um show do Iron & Wine por aqui foi longa e o público merecia uma grande retrospectiva. E a espera valeu a pena. Não necessariamente (ou apenas) porque o show tenha sido musicalmente impecável, apesar de ter sido em vários momentos, principalmente quando Sam reviveu clássicos de forma tão crua e intimista, como “Lion’s Mane”, “16, Maybe Less” ou “Fever Dream”, mas porque Sam transbordava genuína alegria e uma simpatia quase surreal. Sam estava inabalável, em estado de graça e curtia cada canção, cada escorregão que dava. O final foi especialmente emocionante com “Naked as We Came” e “Upward Over the Mountain” lindas como sempre e, atendendo a muitos pedidos, finalizando com a mais dura “House by the Sea”. Se arrependeu de não ter vindo antes e prometeu voltar, voltar até cansarmos. Podia voltar com banda completa também. As canções de The Shepherd’s Dog clamam pela banda, pela guitarra e pela batida e percussão. Porém, na noite de 2 de setembro, no Cine Joia, Sam e sua gratidão bastaram.
A racionalidade pode tentar dizer que o primeiro show que o Yo La Tengo fez em São Paulo, em 2001, pegou a banda em seu auge, logo após o lançamento de …And Then Nothing Turned Itself Inside-Out (2000), e por isso tudo indica que aquela apresentação tenha sido perfeita. Afirmação justa, mas apesar de mais de treze anos terem passado, tudo o que resta e importa após o show que o Yo La Tengo fez ontem no Cine Joia é a paixão e com ela eu digo: o show de ontem, 3 junho de 2014, foi um dos melhores espetáculos de música que já presenciei na vida.
É sempre tolo sair proferindo frases com superlativos e tal. Ainda mais quando todos parecem concordar. Precisa, você pergunta? Precisa.
Precisa porque mesmo após trinta anos de existência, mesmo após o suposto auge ter passado, mesmo após eles terem se reinventado e lançado um punhado de discos mais pop e bem atuais, mesmo após tanto tanto tempo, o Yo La Tengo foi capaz de silenciar e emocionar o Cine Joia com uma simplicidade e naturalidade impressionante. Mas comecemos pelo começo.
O show abriu com “Stupid Things”, do último disco do grupo, Fade. E logo de cara foi possível perceber que o som do Cine Joia estava impecável. Ira foi aquecendo os dedos e a sua guitarra e o som ganhava corpo com a bateria motorik ao fundo. Uma das mais bonitas características do grupo, a repetição, ganhava muita força ao vivo e logo na primeira canção eles já se mostravam em total controle sobre todos os sons que emitiam de cima do palco. Um negócio incrível de se ver.
“From a Motel 6”, de Painful (1993), “Autumn Sweater”, de I Can Hear the Heart Beating as One (1997) e “Last Days of Disco”, de Turned Itself, apareceram na sequência e Ira foi o único encarregado de continuar a hipnotizar o público com o seu canto sussurrado que mais parecia um vento, um belo e diferente instrumento de sopro, um mantra.
Um pouco adiante, foi a hora das mais pop “Is That Enough” e “Mr Tough” alegrarem o ambiente com a melodia para cima e guiadas pelo teclado de Ira. Mesmo sem o violino da primeira ou as linhas de metais da segunda, as canções são encorpadas e dançantes o suficiente para deixar todo mundo bem alegre com os hits recentes.
Além do som, o Yo La Tengo tem total controle sobre o seu setlist também, pois após essa piscadela de alegria, Georgia saiu de trás de sua bateria para cantar a canção mais bonita de Fade, “Cornelia and Jane”, como uma diva, como uma Nico. Os dedos de Ira e James percorriam delicadamente os instrumentos, então o silêncio era mais do que essencial para escutar a poderosa voz de Georgia. O silêncio na verdade era o quarto integrante nessa parte do show e ele se encaixava perfeitamente entre as pausas e os “uhu” de Georgia. “Nowhere Near” manteve os três à frente e Georgia foi se sagrando a heroína improvável, pois ao vivo a sua voz é simplesmente perfeita principalmente quando está acompanhada assim por tão pouco ruído. Em “Black Flowers” foi a vez de James cantar sozinho ao violão e em “I’ll Be Around”, ainda com os três à frente e sem bateria para acompanhar, Ira volta a tomar conta do microfone para esse último gole de intimidade, de amor compartilhado e silêncio.
A essa altura o público já estava um tanto inebriado, imerso e nadando na sutileza do trio, mas ainda faltava acontecer muita coisa ainda. Além de “Before We Run”, cantada por Georgia já sentada na bateria, chegou a vez das bem anos 90 “Deeper Into Movies” e “Tom Courtenay” até o set finalizar com as apoteóticas “Ohm” e “The Story of Yo La Tengo”. Provando para quem ainda não tinha entendido que o auge podia até ter ficado para trás, mas o grupo não olhava com olhos saudosos para trás.
A verdade é que o show poderia ter acabado aqui, mas o bis ainda guardou a última surpresa. Não no cover de ZZ Top, nem na sempre presente “You Can Have It All”, mas na linda e singela versão de “I Found a Reason”, do Velvet Underground.
Além de serem capazes de suavizar qualquer ambiente, o YLT tem absoluto controle de sua arte. Ira é milimétrico em sua guitarra e hipnotizante com o seu canto, James é impecável no baixo e um backing vocal mais do que bonito e suave e Georgia um furacão em forma de mãe. Trinta anos de vida deram ao trio muita experiência e se você, assim como eu e muitos outros, perdeu aquele show de 2001 ou nem conhecia a banda na época, fique tranquilo. A apresentação do Yo La Tengo no Cine Joia foi simplesmente perfeita.
Não por acaso as apresentações do of Montreal dos últimos cinco anos, pelo menos, giram em torno de Hissing Fauna, Are You the Destroyer?, pois trata-se do álbum mais completo, pop e dançante do grupo nessa fase mais grandiosa e performática. Portanto, por mais surpreendente que seja o fato do of Montreal, em sua segunda passagem pelo Brasil, não ter tocado nenhuma música do seu mais recente álbum, o ótimo Paralytic Stalks (resenha), não surpreende em nada que pelo menos metade do setlist tenha sido composto por canções de Hissing Fauna, Are You The Destroyer?.
Comparado com o primeiro show que o grupo fez no país, como parte do lineup do Festival Planeta Terra de 2010, essa segunda apresentação, realizada no Cine Jóia, em São Paulo, foi muito mais intimista, impactante e divertida. “Suffer for Fashion” abriu o show e a empolgação do sexteto já começava a reverberar pela casa, porém, não reverberou todo o seu potencial, pois o som estava baixo e alguns intrumentos, como a guitarra de Kevin Barnes, sumiam no ar. Na sequência vieram dois hits de The Sunlandic Twins, “The Party’s Crashing Us” e “Forecast Fascist Future”, que deixaram o clima da casa mais aconchegante, perfeito para emendar “For Our Elegant Caste”, de Skeletal Lamping, e “Coquet Coquette”, a única de False Priest. Um início extremamente dançante, que ganhou força e forma conforme a apresentação avançava.
Mas além dos hits e da dancinha alegre, foram os dois dançarinos/performers que subiam e desciam do palco com novas fantasias que trouxeram a outra parte do show que faltou na primeira passagem do grupo: a intimidade e todo o estímulo visual que envolve uma apresentação do of Montreal. Após jogarem bexigas para o público e fazerem um mosh duplo, os performers encenaram as suas breves peças, que combinavam com o clima, e comprovaram ser parte essencial do show, mesmo em número reduzido. E entre hits dançantes, fantasias e teatro o show foi caminhando para o seu ápice, em “The Past Is a Grotesque Animal”, não só a melhor parte do show e a música preferida de Kevin, como o ponto onde o grupo se uniu para contrabalancear a hora anterior de pop dançante com um contundente kraut rock, alto, bonito e com aquela letra perfeita que se estendeu para além dos 12 minutos registrados no álbum e fechou a primeira parte do show. No bis, eles ainda tocaram os hits “A Sentence of Sorts in Korgsvinger” e “Heimdalsgate Like a Promethean Curse”, mas num piscar de olho encerraram a apresentação com menos de uma hora e meia de duração, deixando muitos esperançosos pelo retorno do grupo aos palcos. Em vão.
O show poderia ter sido mais comprido e o som poderia estar um pouco melhor? Tenho certeza que sim, mas esse segunda passagem do of Montreal no país foi boa o suficiente para deixarmos no canto da memória a mais distante e de pouca ação no palco da primeira. Os hits, o teatro e a empolgação do of Montreal sempre serão perfeitos para deixarmos nossa parte fria do lado de fora do show, junto com os que preferem fumar um cigarrinho a dançar.
“No one wants to dance / They’re outside smoking cigarettes”
O Anacronismo Sublime de Mark Lanegan
Você quer saber como foi o show do Mark Lanegan e sua Mark Lanegan Band no Cine Joia, dia 14/04 último? Bem, isso vai depender do que você espera de um show.
Se você procura diversão crua e desinteressada vinda de um grupo competente, mas tão esquecível quanto um almoço num fast-food, essa talvez não seja a sua praia. A música e a presença de Lanegan no palco cobraram a atenção da plateia desde os primeiros acordes de “When Your Number Isn’t Up” e essa cobrança por atenção não deu trégua até o final da apresentação, o que não chegou a ser nenhuma surpresa se você conhece o trabalho solo do ex-vocalista do já lendário Screaming Trees. Agora, é necessário dizer que, apesar de atemporal, essa intensidade autoral toda certamente soa anacrônica numa época em que bandas, músicas e shows são cada vez mais pensados e criados a fim de servirem como trilha sonora incidental para alguma outra coisa: correr, namorar, curtir a balada, dançar, criar sets descolados para tocar nas festas de amigos etc.
A música, de maneira geral, se acomodou no papel de coadjuvante num mundo mais interessado em digerir as fofocas sobre a vida e os contratos das celebridades pop do que ouvi-las. A (des)vantagem de artistas como Lanegan está justamente no fato de que eles não se acomodam nesse papel e isso faz com que sua carreira se aliene mais e mais de tudo que não seja absolutamente autoral, subjetivo (idiossincrático até) e verdadeiro, num sentido humano e tradicional. Isso não significa que Lanegan não busque se atualizar, mas indica que sua atualização ocorre num tempo e em respeito a condições que pouco dialogam com qualquer tendência ou modismo. Para mim, portanto, dizer que hoje existe um Mark Lanegan mais dançante, pop, luminoso e redimido soa reducionista e aproveitador. Estão tentando rotular tudo, então por que não dar uma força ao veterano e vende-lo como alguém que finalmente pegou o ônibus hipster, não é mesmo? O problema é que revisitar o trabalho anterior desse artista desabona todos esses adjetivos redentores e rótulos pois, a exemplo de alguns outros heróis aos quais presta tributos diretos (Tim Hardin) e indiretos (Leonard Cohen), Lanegan não parece se preocupar muito com esse tipo de redenção tardia e mentirosa: seu intuito, como ele mesmo diz, parece ser muito mais criar músicas que soem relevantes a seus próprios ouvidos e conquistar, assim, mais pela coerência teimosa do que pela atitude conciliadora.
Assim, enquanto muitos artistas se esforçam em capturar o Zeitgeist atual e reproduzi-lo na forma de não-canções fragmentadas, derivativas, irreverentes e assumidamente medíocres, Lanegan nos entrega canções com refrão, andamentos pesados e letras sobre demônios e anjos cantadas com uma voz cavernosa mas perfeitamente afinada, ou seja, nada que nos lembre androginia, pós-modernidade, tecnologia portátil e vulnerabilidade fofa. A empatia com esse artista, se existir, virá da consistência e não da dúvida levada ao palco.
Um show pode ser um espetáculo excludentee autocentrado, mas pode também funcionar como uma conversa, cada música servindo de convite para que o espectador investigue como aquelas palavras e melodias o afetam, o que têm a dizer sobre suas ideias, suas emoções, memórias e dores. Fica mais fácil aceitar o convite quando ele vem de um artista que parece, ele próprio, envolvido num processo humano de investigação e não numa histeria robótica qualquer.
Tudo isso posto, a apresentação no Cine Joia foi um show adulto para uma plateia nem tão adulta assim. Usar um show do Mark Lanegan para badalar no sábado à noite paulistano me parece muito estranho, muito caro e pouco efetivo, mas era esse o plano de muitas pessoas que ali estavam. Muitas fotos, muita pose, muita bebida… e quem é Mark Lanegan mesmo?
Quase todo repertório foi tirado dos dois últimos álbuns e o engenheiro de som da casa pareceu não acertar a mão de novo (como no show do Thurston Moore na quinta anterior). Algumas músicas foram cantadas por parte da plateia, enquanto a outra parte ria e fazia comentários sobre a roupa e a qualidade dos drinks servidos pela casa.
Um show de rock não é uma missa e Mark Lanegan não é Bach, mas se dermos uma chance para ele, algo sublime pode acontecer com nossos ouvidos e corações. Pena que cada vez menos pessoas estejam dispostas, por um motivo ou outro, a dar essa chance ao sublime. As pessoas aplaudiam aparentemente entusiasmadas e o frontman educadamente agradecia de tempos em tempos, mas para mim sinceramente ficou a impressão de que os aplausos não eram para ninguém em especial, serviam apenas como mais um protocolo da curtição.
Você quer saber como foi o show do Mark Lanegan e sua Mark Lanegan Band no Cine Joia, dia 14/04 último? Se ainda precisa perguntar é porque nunca vai entender.